“Nunca sopres para a afiadeira que enferruja.” – ensinava-me o meu tio Paulo, com quem muitas vezes fui ao Porto de comboio em criança. Chegados a São Bento, seguíamos pela Sá da Bandeira e logo virávamos na primeira à esquerda: uma travessa pedonal cheia de vida. No início, a senhora das castanhas, pouco depois, um vendedor de taludas e, à entrada do prédio para onde nos dirigíamos, passando o quiosque, estabeleciam-se uns três ou quadro engraxadores à espera de fregueses. Ao centro das escadas de madeira um elevador com porta de correr que chocalhava com um “clonk” quando alguém entrava. Ele enchia o peito para não mostrar o seu receio do elevador e fazia antes uma corrida comigo escada acima até ao 3.º andar. Pelo caminho, um sinal na parede com letras bem redondas: PROIBIDO CUSPIR PARA O CHÃO. Mais um lance, e eis que chegávamos a um planalto encantado, repleto de todas as cores do mundo com armários de portadas tão altas que os seus vidros tinham estrias: era uma papelaria à moda antiga.
Letra D • Diários Gráficos
Ainda me sinto um miudito sempre que entro numa papelaria e, tal como nessa altura, mal consigo resistir à tentação de trazer comigo um saco cheio à saída. Mas de certeza que não sou o único, pois não? Quantos de nós nunca compraram um caderno novo com dois ou três por completar lá em casa? Ouvi uma vez alguém comentar que isso mais não era do que tentarmos aproximar a nossa prática do método científico: Observação > Hipótese > Experimentação > Análise > Conclusão.
Observação – Para lá do que nos diz o manifesto USk, os momentos de observação acontecem a todo e qualquer instante, começando antes sequer de pensarmos no enquadramento de um desenho: está sol ou sombra de onde vou desenhar? há lugar para me sentar ou vou ter de ficar de pé? tenho boa visibilidade ou há pessoas constantemente a passar à frente?
Hipótese – Aqui entra definitivamente a nossa gula quando entramos numa papelaria porque nunca sabemos o que o futuro nos reserva. Mas as hipóteses que colocamos recaem invariavelmente em duas questões principais: será que este material me vai ajudar a atingir melhores resultados do que já costumo atingir e/ou será que é desta que vou conseguir sair da minha zona de conforto e experimentar algo totalmente diferente? No fundo, a diferença entre: será que esta caneta aguenta bem uma aguada e/ou será que é desta que uso a borracha líquida que comprei daquela vez e nunca mais usei? No fundo é, ao mesmo tempo, o conforto do material já dominado e o incerto do material que nunca utilizámos que alimentam a nossa faceta de colecionador de material artístico.
Experimentação – Sempre que ataco a folha branca arranco com uma regra, seja ela qual for. Pode ser simplesmente a ordem pela qual utilizo o material: será que desenhar primeiro a lápis, pintar a aguarela e depois traçar a caneta preta vai ter um resultado assim tão diferente de desenhar diretamente a caneta preta e depois pintar a aguarela? Pode ter a ver com a escolha da paleta: será que vou utilizar todas as cores à minha disposição ou escolher só tons pastel? Pode ter a ver com o tempo que irei despender no desenho: um desenho de 5 minutos é completamente diferente de um de meia hora. Ou pode ter a ver com o tipo de caderno que estou a usar – seja pelo formato, pela encadernação ou pelo tipo de papel. Seja como for, a experiência só termina quando passarmos à próxima página.
Análise – A análise não está propriamente dissociada do momento da experimentação. Estou em crer que, tal como na física quântica em que o próprio ato da medição altera o resultado, em desenho o resultado final depende da análise constante em todos os momentos da sua execução: o enquadrar bem o desenho no papel, o conseguir manter as proporções, o manter equilíbrio no registo, o distanciar do desenho e o saber quando parar — são tudo momentos de análise em tempo real que, se não fizessem parte da experiência, resultariam num desenho desprovido de qualquer tipo de toque pessoal. Nem sequer vos vou dizer quantas vezes estraguei um desenho por analisar incorretamente de que precisava de só mais um traço… Ainda assim, a análise também passa pela escolha voluntária de partilhar o trabalho com a comunidade, seja com quem participou presencialmente num evento, seja através das redes sociais. Mas essa análise, a meu ver, não pode dispensar a repetição da experiência nem, muito importante, a partilha de material com o colega do lado – não será essa mesma partilha que irá suscitar uma nova hipótese noutro momento!?
Conclusão – E assim vamos cimentando a nossa prática. As conclusões que tiramos estão diretamente ligadas às nossas expectativas e o assumir do trajeto que traçamos em cada nova página é, muito literalmente, o papel do nosso diário gráfico.
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E depois ainda há que decidir a orientação do desenho... (com Marilisa Mesquita @ Jardim D. Luís, Lisboa) |
Cada um de nós procura características diferentes num diário gráfico: ora se o papel é bom para aguada ou melhor para caneta, ora se dá para desenho gestual ou se cabe no bolso do casaco; se o formato permite desenhar na panorâmica ou se a encadernação permite que as folhas se soltem com facilidade.
E cada um lhes dará utilizações diferentes: se nos vão acompanhar numa viagem, se vão servir de agenda ou para anotar ideias, se vão servir só para esboços, se podemos dobrar/rasgar folhas, se vamos permitir que outros o risquem, ou sequer que lhe dêem uma vista de olhos... E, como será perfeitamente compreensível, com o tempo lá se vão tornando artefactos sacrossantos...
* * *
Deixo-vos agora algumas vicissitudes que sobre o assunto me atormentam:
Nunca uso a primeira folha. Qual identificar o caderno em caso de extravio? Nada disso! E desenhar muito menos — comigo, fica sempre em branco. Superstição? Não. É mesmo só o medo da folha branca.
Tenho um caderno de acordeão há anos! Estou só à espera da rua perfeita para me pôr a desenhá-la de uma ponta a eito — mas o edil lembra-se sempre de começar obras nos momentos mais inoportunos… (cof cof)
Descobri da pior forma que aquela desculpa de mau pagador do “ó s’tora, o cão comeu-me o TPC” afinal acontece na vida real. Só que no meu caso… Bem, não vou entrar em pormenores — vou só dizer que a tonalidade dos meus desenhos ficou um tanto ou quanto amarelecida…
Aconselho vivamente a que arranjem todos um caderno de folhas pretas! Desenhar a luz em vez da sombra dá um nó no cérebro muito aprazível de desatar.
Gosto bastante de desenhar a várias mãos nos meus cadernos: retratos a meias, telegramas (drawception), cadavres exquis — pode ser que aos poucos lá vá perdendo o medo da folha branca e, daqui a uns anos, regresse a todos os cadernos, um a um, e finalmente desenhe na primeira folha.
Todos temos algo para contar sobre os nossos cadernos e os momentos que passamos com eles. A nossa relação com o diário gráfico tem uma história e bastaria folheá-los para nos transportarmos para outros momentos, outros locais, tal qual contadores de contos, para conhecermos o que cada sketchbook encerra.
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